Assim que soube que o regime da
pré-reforma estava operacional, Maria, professora de inglês com 58 anos,
dirigiu-se aos serviços administrativos e à direcção da escola onde trabalha
para saber como podia dar início ao processo. “Ainda não sabemos”, responderam-lhe.
Tal como Maria, que pediu para não ser identificada pelo verdadeiro nome,
outros funcionários públicos interessados em pedir a pré-reforma têm sido
confrontados com dúvidas sobre a aplicação da lei, o que está a travar o acesso
a este mecanismo.
A pré-reforma na função pública está
prevista há já vários anos. Mas só a 6 de Fevereiro de 2019 entrou em vigor o
decreto que regulamenta o intervalo de valores a pagar a quem suspende a
prestação de trabalho e que define os protagonistas da negociação do acordo de
pré-reforma.
O problema é que este decreto deixa
vários aspectos em aberto. Um deles tem a ver com a ausência de critérios para
fixar o valor da prestação da pré-reforma. A lei apenas diz que ela pode
oscilar entre 25% e 100% da remuneração base, cabendo ao trabalhador e ao
serviço negociar. Outro aspecto pouco claro está relacionado com os
interlocutores na negociação do acordo de pré-reforma. Se em alguns serviços é
fácil determinar quem é o empregador público e o dirigente máximo, nas escolas
ou nas autarquias não é assim.
Dúvidas como estas podem explicar o
facto de, passado um mês e meio desde a entrada em vigor do decreto
regulamentar, o Ministério das Finanças não ter recebido qualquer processo de pré-reforma para
ser aprovado. “Até à presente data não foi recebido qualquer processo com um
acordo estabelecido e autorizado pela respectiva tutela para obtenção da
autorização da área governativa das finanças e da administração pública”,
confirmou ao PÚBLICO fonte oficial das Finanças.
A mesma fonte assegura, contudo, que
“têm sido recebidos pedidos de informações, bem como mensagens com declarações
de interesse que têm sido encaminhados para as respectivas tutelas, uma vez que
o processo tem de ser iniciado por acordo entre a entidade empregadora pública
e o trabalhador, sendo esse acordo da iniciativa de qualquer uma das partes”.
Já sobre as dúvidas em concreto, o
ministério tutelado por Mário Centeno não as esclarece e remete para um
documento que está a ser preparado pela Direcção-Geral da Administração e do
Emprego Público e que será publicitado “em breve”.
Maria, que dá aulas há 37 anos, vê na
pré-reforma uma oportunidade para antecipar a sua saída do ensino numa altura
em que “o cansaço psicológico e físico começa a repercutir-se na saúde”. “Não
quero ficar doente e passar à situação de baixas médicas prolongadas, uma
situação dramática que acontece em muitas escolas”, conta ao PÚBLICO.
Esta professora de Torres Vedras espera
conseguir a pré-reforma antes do início do próximo ano lectivo e, perante as
dúvidas manifestadas pelo director do agrupamento onde dá aulas, decidiu pedir
esclarecimentos aos Ministérios da Educação e das Finanças. De um lado, teve
como resposta o silêncio; do outro, recebeu um email que a deixou ainda mais
baralhada. “Sugere-se que as questões sejam colocadas, em primeira linha, junto
do órgão ou serviço onde desempenha funções ou junto da secretaria-geral
ou do serviço que tenha a seu cargo a gestão dos recursos humanos ao nível do
respectivo ministério”, respondeu a Direcção-Geral da Administração e do
Emprego Público (DGAEP).
Ora esse caminho já ela tinha feito, sem
sucesso. “Como é possível informarem os jornais de que não entraram quaisquer
pedidos se estes não conseguem sair das mãos dos interessados”, questiona.
Aos sindicatos têm chegado muitos
pedidos de esclarecimento, mas também eles não conseguem dar respostas aos
trabalhadores, o que levou a Fenprof (Federação Nacional dos Professores) a
pedir, esta semana, uma reunião com a secretária de Estado da Administração
Pública.
Cerca 40% dos
professores podem sair
Situações como a de Maria poderão
multiplicar-se nas escolas, com a saída de um elevado número de professores. O
alerta é deixado por Mário Nogueira, dirigente da Fenprof, que estima que cerca
de 40% dos professores do quadro tenham mais de 55 anos e reúnam as condições
para pedir a pré-reforma. “São à volta de 50 mil professores. Se todos saíssem,
havia escolas que ficavam com seis docentes”, alerta.
Para evitar uma saída em massa, o
dirigente defende que a prestação a pagar ao trabalhador devia depender da
idade ou da disciplina em causa, “criando um gradualismo na saída das pessoas”.
Também Filinto Lima, presidente da
Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, receia
que a pré-reforma seja encarada pelos professores como uma saída para a
situação de “cansaço” e “exaustão” em que muitos se encontram, agravando o
problema da falta de docentes que já se vive em algumas disciplinas. “Não sei
se foi ponderado o risco de saída de um grande número de professores”,
questiona o professor.
“Temo que seja um bom negócio para o
Estado e um péssimo negócio para os professores que se sentem pressionados e
cansados e acabem a sair por tuta e meia. Urge que sejam feitos os
esclarecimentos necessários para que os professores tomem uma decisão
ponderada”, desafia.
Do ponto de vista das contas públicas, a
saída de trabalhadores para pré-reforma pode representar uma poupança, uma vez
que quem sai tem tendencialmente um salário mais elevado e como vai receber uma
prestação inferior, o Estado acaba por poupar. E mesmo que seja necessário
admitir novos trabalhadores, os seus salários serão sempre mais baixos.
Sem critérios,
serviços não negoceiam
Não é só entre os professores que há
interesse na pré-reforma. José Abraão, dirigente da Federação de Sindicatos da
Administração Pública (Fesap), diz que os sindicatos têm sido contactados por
técnicos superiores, assistentes técnicos e operacionais em particular das
áreas da saúde e das autarquias a pedirem informações sobre o processo.
“Quem nos consulta está cansado e muitos
estão dispostos a sair independentemente do valor da prestação”, lamenta,
acrescentando que mesmo os assistentes operacionais, que têm salários mais
baixos, têm manifestado interesse. “Se ficarem a receber 80% do salário,
e como podem trabalhar no sector privado, ganham mais do que se
continuarem a trabalhar para o Estado”, exemplifica o dirigente.
A questão, diz Ana Avoila, coordenadora
a Frente Comum, é que os pedidos dos trabalhadores esbarram na ausência de
critérios para negociar a prestação da pré-reforma, problema que os sindicatos já tinham identificado quando
no ano passado o Governo lhes apresentou o decreto regulamentar. “Como não há
critérios nem orientações, os serviços não sabem o que hão-de fazer à vida e
têm dificuldades em aplicar a lei”, destaca.
O resultado, lamenta José Abraão, “é que
fica aberta a porta à arbitrariedade”. “Mesmo que os serviços fundamentem o
valor a pagar ao trabalhador, o ministro das Finanças, que tem a palavra final,
pode sempre chumbar”.
O PÚBLICO questionou o Ministério das
Finanças sobre se serão dadas orientações aos serviços para a negociação
dos acordos de pré-reforma, mas mais uma vez remeteu a resposta para o
documento que está a ser preparado pela DGAEP.
Fonte: Público
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