Bateu à Porta

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Leitura altamente recomendada a docentes com mais de 50 anos

Notas prévias: O autor deste texto não é jurista. O autor deste texto tem 45 anos e não beneficiou nunca de nenhuma redução de componente letiva. Mas acredita no Estado de Direito e acha que é preciso lutar-se por ele. E o respeitinho não é bonito. Pode até ser estúpido.
O artigo 79º do ECD está a ser bem aplicado?
Aos que querem resposta rápida, digo que a resposta é complexa, mas prometo que, no fim deste texto e do seguinte, talvez tenham algumas pistas relevantes para a vossa própria análise. E irei tentar evitar argumentos de autoridade (que não tenho condições de usar) do que resulta que os textos sejam longos. Mas acho que, quem tem mais de 50 anos, terá muita utilidade em ler estas reflexões com atenção. E, se ler isto tudo vai dar trabalho, pensem que, tendo a idade que tenho, me dei a este trabalho todo por razões mais profundas que o simples interesse pessoal. Mais do que dar uma resposta, vou tentar explicar como cheguei à resposta que dou para mim próprio à pergunta.
Que até poderei vir reconhecer estar errada… se me provarem. E não com argumentos de autoridade.
Se não tiverem pachorra para ler,  resumo o conselho:  vão a um advogado, que não se deixe impressionar por circulares e pelo seu nulo valor legal e que estude o problema.
E pode valer muito a pena gastarem dinheiro numa simples consulta (as horas letivas não reduzidas podem valer uns milhares de euros acumuladas em vários anos, mesmo se as tivessem de prestar como não letivas). E para aqueles que acharem que o que aqui se diz não tem credibilidade e é obra de um ignorante, aceito pessoalmente discutir o assunto (podem contactar pelo endereço do blogue, que responderei cordatamente, mesmo que se posicionem nessa base). Aceito ser ignorante, mas têm de me provar.
Poderá parecer arrogante, mas para os que me atiram com o argumento do que está escrito nas circulares do ME sobre este tema eu respondo: exponho aqui o meu raciocínio e a sua base racional; os autores das circulares dão-se a esses trabalhos ou usam apenas o poder de mandar?
Por isso, comecemos pelo fim.
As circulares valem sobre as leis?
Direito circulatório é uma expressão relativamente comum em juristas que se dedicam às áreas administrativas e fiscais e representa, até com ironia, a ideia de que em Portugal parece que vigoram 2 tipos de níveis de normas:
– as leis (Leis, Decretos-Lei e Decretos Legislativos regionais) e regulamentos (decretos-regulamentares, portarias, etc) que valem por serem mesmo normas jurídicas;
– e as circulares (interpretações dessas normas legais e regulamentares, feitas por alguém dentro da administração, muitas vezes nem sequer membro do Governo, com a sua leitura e explicação pessoal sobre o que a lei diz e que funcionam como ordens aos funcionários e órgãos subordinados, que têm de as aplicar).
Parece mas não é assim.
Um ponto prévio sobre a polémica
Antes de explicar a relevância disto para o caso do artigo 79º e a redução da componente letiva, um ponto prévio, com uma face geral e outra, pessoal.
Primeiro a nota geral. Na área de educação, alguma carência de estudo do Direito, leva os professores, dirigentes e responsáveis administrativos a elevar as circulares a píncaros de capacidade de vincular, que realmente não têm. O Código de Procedimento Administrativo estipula, com clareza indubitável que a administração, seus trabalhadores e dirigentes, estão primeiramente vinculados à lei. Também estão vinculados às ordens legítimas dos seus superiores hierárquicos, mas a lei explicita muito bem este aspeto da ordem “legítima”. É ilegítima a ordem que não cumpra ou que promova a violação da lei.
Agora a nota pessoal. Faz, por estes dias, 10 anos que o Supremo Tribunal Administrativo decidiu que o escriba destas linhas podia tomar posse como presidente de um conselho executivo. Para conseguir essa decisão tive de fazer (através do trabalho de advogadas brilhantes e persistentes) várias reclamações administrativas, 1 recurso hierárquico, 1 ação urgente de anulação de processo eleitoral, responder a 2 recursos do Ministério da Educação, ameaçar com uma ação executiva e ainda com uma queixa-crime. No fim, depois de passar por 3 níveis de Tribunais Administrativos, tomei posse e exerci funções 6 anos. O ponto da lei que andei a contestar e que, para os leitores ávidos de direito circulatório, não suscitava dúvidas, na minha alegada falta de razão, acabou até por ser mudado em nova lei de forma a ficar mais claro. E no sentido que eu defendia. Assim, consegui ganho de causa individual e ajudei a obrigar pela teimosia a mudar a lei.
As circulares e ofícios eram “definitivos” sobre a minha falta de razão. Quem quiser conhecer esse processo melhor pode consultar aqui.
Gostava que, nos casos altamente duvidosos de aplicação do artigo 79º do Estatuto da Carreira Docente, alguém seguisse esse caminho de luta (com sindicatos ou sem eles; e, na altura, nesse caso, até fui à luta contra o parecer deles). Daí ter pedido ao Alexandre que neste blogue falasse do tema. E lamento que, por ter feito o que lhe pedi, até tenha sido ofendido.
O caso similar da caducidade dos contratados
Como dirigente (PCE e depois diretor) tive de aplicar várias circulares, mas sempre com o espírito com que olho estas coisas. As circulares são ordens, mas não valem sem se ler a lei, na sua versão original.
E muito menos pode haver circulares a revogar leis ou a “legislar” contra ela.
Relembro 1 caso significativo: a caducidade dos contratos docentes. O esquema mental de quem fez essa é muito semelhante ao de quem fez as relativas ao artigo 79º do ECD. Basicamente interpreta-se a lei com o objetivo de tirar direitos e poupar dinheiro (mesmo que a lei os atribua e implique, por isso, o gasto que se quer evitar).
Nas escolas, prefere-se a lei mastigada em circulares, à própria leitura da lei. Depois, como muita gente vive com o pavor dos processos disciplinares e, normalmente, os dirigentes não são muito versados em CPA e regras de interpretação da lei, entre a interpretação oferecida pela administração (ou, como muitos gostam ainda de dizer, a “tutela”), apresentada como única e vinculativa, e a interpretação individual, que é legítima e necessária para quem aplique leis, acaba por valer o que diz a circular.
Acresce que a circular é interpretada como uma ordem que os “subordinados” têm de cumprir (e até o é) e que, além disso, faz figura de interpretação autêntica da lei (isto é, uma interpretação vinculativa). Faz figura porque realmente não tem esse valor de interpretação autêntica.
As circulares são ordens para os cidadãos?
A circular tem o valor de uma simples ordem de alguém a outro, dentro da administração. Na verdade, não tem eficácia externa (que só as leis e regulamentos podem ter).
Sobre isso vale a pena ler o artigo 138º, nº 3 do CPA que estabelece a ordem de prevalência dos regulamentos governamentais. As circulares não constam aí porque não são um regulamento governamental e, por isso, tem valor normativo inferior a decretos regulamentares, resoluções do Conselho de Ministros com valor normativo, Portarias e até despachos (de membros do Governo). E estas normas todas valem sempre menos que as leis.
Assim, as circulares valem para os dirigentes e para funcionários para determinar atos, mas não para os cidadãos afetados por efeitos ilegais delas, que não têm de se resignar à ilegalidade (e que, como cidadãos afetados nos seus direitos, podem usar muitos outros meios para reagir).
Os professores a quem é negada a redução de componente letiva não têm de se sentir limitados pelo teor de qualquer circular. Em especial, se ela negar direitos que resultam da formulação textual da lei.
No caso da caducidade dos contratados, e há vários colegas contratados que são testemunhas disso (e há provas escritas), como diretor, cumpri a circular, mas escrevi ao ministério (com conhecimento aos cidadãos, os professores contratados visados), dizendo que o fazia apenas por me ser dada a ordem a que não me conseguia furtar. Na comunicação explicava que considerava que a interpretação da circular sobre a lei era ilegal e contestável juridicamente, solicitando, antes de a cumprir, que a confirmassem. A argumentação que aí verti foi, pelos vistos, motivadora para vários contratados irem para tribunal e, na generalidade, foi acolhida pelos tribunais.
Não tive nenhum processo disciplinar por dizer, de forma elegante, que a dita circular estava escrita com os pés e tinha o único objetivo de poupar uns trocos. E se algum dos contratados que recorreu aos tribunais viesse a solicitar que fosse responsabilizado como indivíduo, pela decisão ilegal tomada, teria a defesa pessoal de dizer que até tinha avisado disso quem me deu a ordem que cumpri e, por isso, a culpa dos efeitos era de quem deu a ordem (ao escrever a circular).
Todos os diretores que recusam reduzir componentes letivas, com base nas circulares da DGAE sobre o artigo 79º do ECD, estarão conscientes disto que acabei de escrever? E preparados para poder chegar a pagar do seu bolso o prejuízo?
Mas, a verdade é que quase toda a gente cumpre as circulares como um dogma de fé, sem se questionar sobre o que elas valem realmente e até sobre os riscos de, com base nelas, executarem ordens ilegais.
O direito circulatório como problema geral
Este tema é muito candente em várias áreas. Por exemplo, nas questões tributárias. É uma questão densa, mas, sem dificuldade, se podem encontrar textos de juristas a falar disto. Por exemplo, vejam este texto publicado numa revista de Técnicos oficiais de contas.
Cito só esta passagem, longa, mas que ajuda a reorientar o olhar sobre as circulares de quem leva com elas todos os dias (os sublinhados são meus e ao contrário de mim, quem escreveu é jurista):
“Desde sempre e, ultimamente, com maior acuidade proliferaram na Administração Pública e, particularmente, na Administração Fiscal as circulares, os ofícios circulados e as instruções. Tais comandos normativos, por vezes impropriamente apelidados de “direito circular” ou “direito circulado”, constituem resoluções meramente administrativas, de carácter geral e abstracto. E coloca-se a questão de saber se estamos perante verdadeiras normas jurídicas, perante uma fonte de direito.
Antes de mais, importa referir que é de todo incompreensível na Administração Pública, maxime na Administração Fiscal, o recurso a tais despachos genéricos, só aceitáveis face à incompreensão das leis fiscais e à sua proliferação, quantas vezes descoordenadas entre si e cuja técnica legislativa passa ao lado de princípios elementares do direito. Isto para além de, muitas vezes, a pressa da lei se sobrepor à técnica jurídica. Depois lá vêm as circulares e os ofícios circulados, algumas vezes quase tão extensos como a lei interpretada.
Feito este aparte, que nos parece pertinente face ao despudorado abuso de tais comandos interpretativos que, por vezes, ultrapassam a própria lei, desvirtuando-a, questiona-se a sua eficácia externa ou a sua força legal.
(….) Assim, tais comandos normativos não poderão ter eficácia externa, sendo a sua força vinculativa circunscrita aos sectores da Administração Pública hierarquicamente dependentes do órgão de que foram emanados. Ou seja, a força vinculativa de tais diplomas assenta na autoridade hierárquica dos seus autores, conjugada com o dever de obediência dos subordinados a que se destinam. Concretizando, uma circular emanada, por exemplo, do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, ou do Director-Geral dos Impostos, tem por destinatários os funcionários hierarquicamente dependentes daquelas entidades que, por isso, lhes devem obediência hierárquica. Mas a sua eficácia não extravasa aquele âmbito restrito departamental. A eficácia de tais diplomas não se estende aos contribuintes, que devem apenas obediência à lei e não às interpretações que dela fazem os serviços governamentais.”
Onde se lê contribuintes leia-se “docentes cuja redução está em causa” e creio que fica claro o que devemos dizer das circulares interpretativas da DGAE sobre o artigo 79º, se elas afetam direitos legais.
Há muita doutrina sobre isto (veja-se por exemplo, entre outros textos acessíveis, este parecer do Conselho Consultivo da PGR que vai na mesma linha o texto que citei).
Assim, retornando ao contexto escolar, um diretor, trabalhador em funções públicas, até tem por dever de obediência, de cumprir uma circular, porque é uma ordem resultante do poder de direção de alguém que lha possa dar, mas pode até discuti-la e questioná-la pelo processo que a lei prevê para a discussão e contestação de ordens ilegais ou ilegítimas. E no limite, se a cumprir, e como o valor da obediência a ordens está sujeito à legalidade dessas ordens, até pode ter problemas de responsabilidade se, para cumprir uma circular, desrespeitar uma lei.
Admito que isto pode parecer abstruso, mas tem razões jurídicas fortes (e poupo-vos ao exemplo clássico do argumento defensivo do cumprimento de ordens pelos réus de Nuremberga, que qualquer busca na net permite topar e que é muito demonstrativo pelo absurdo).
Quem sofre os efeitos de circulares tem de desistir dos seus direitos só por elas existirem?
O cidadão (no nosso caso, os professores que não tem direito à redução de componente letiva, por via da interpretação de uma certa circular, ou várias que sejam) não tem de aceitar isso como solução definitiva e tem de se mexer juridicamente, se dá valor ao direito que perde. O conselho de ir a um advogado/a para uma consulta é sempre um bom conselho. E mais neste caso, em que os valores são significativos.
Em resumo, para discutir o que diz o artigo 79º do Estatuto da Carreira docente vamos aqui, por uma vez, esquecer a (s) circular(es), que muitos tem vindo a esgrimir como argumento definitivo para que o assunto “esteja resolvido”.
O pagamento do valor da caducidade aos contratados também era assunto resolvido e, na generalidade, os que foram discutir para tribunal o seu direito legal, contra a circular, ganharam e receberam a massa…
Não discutir beneficia o infrator
A verdade é que a maioria dos afetados pela ilegalidade e retirada de direitos, causada por essas circulares da caducidade não foi para tribunal discutir. Assim, a ilegalidade, vertida nas circulares e que visava poupar dinheiro ao Estado (em valores relativos a caducidade), compensou bastante ao infrator (o ME).
Os que se convenceram que a circular valia, e não foram para tribunal, podem até tê-lo feito por causa dos custos para si dessa reação.
A Administração está vinculada à lei e não devia ser necessário ir sempre para tribunal para conseguir firmeza no cumprimento da lei.
Os que foram para tribunal, e ganharam, além do prémio da sua coragem e inconformismo, prestaram um bom serviço ao Estado de Direito, porque não entraram no jogo de quem faz circulares subversivas: apostar no cansaço e apatia de quem lhes sofre os efeitos.
Aposta que continuará a vingar se se aceitar a prática inconstitucional de despudoradamente um simples diretor geral, ou menos que isso, anular a vigência de leis por via de circulares. E os contratados da caducidade até podem ter ganho menos em valor que o que vale a questão do artigo 79º.
E, como já recorri a tribunais contra a máquina do Ministério da Educação, sei bem o que devem ter sofrido os que reagiram, com a forma como o ME atua nessas circunstâncias.
Deixar passar circulares que difundem interpretações erróneas (e subversivas) de direitos laborais, ou outros, como leis que não são, enfraquece a Lei e o Estado de Direito.
Por achar que era preciso gente a agir assim no caso do artigo 79º do ECD, e estando muito ocupado com outros assuntos, neste final de ano, pedi, por isso, ao Alexandre que chamasse a atenção neste blogue para o caso e a sua má interpretação por via de circulares do ME.
O turbilhão que isso causou por aqui justifica que se volte ao tema. E tudo o que de negativo foi dito sobre a iniciativa do Alexandre deve ser-me imputado a mim.
Mas, para quem acena com a circular que o ME fez sobre isto para declarar o assunto encerrado, digo só isto: se houver coragem e energia para uma reação jurídica bem estruturada, o assunto ainda só agora começou.
E aí o papel dos sindicatos pode ser relevante, se defenderem juridicamente os interesses difusos aqui prejudicados ou apoiarem os associados que se queiram mexer. Apesar de já ter havido uma derrota num caso que chegou a tribunal, isso não devia ter significado a desistência, mas a insistência, porque o assunto nem sequer chegou a ser analisado pelo Supremo Tribunal Administrativo e “uma andorinha não faz a primavera”.
E isto, especialmente, se o caso em que o tribunal não deu razão ao docente que reclamou (e a deu ao ME) tinha condições particulares, que justificam essa derrota, que pouco tem de definitiva para os restantes abrangidos e para a generalidade do problema.
Por isso, o meu ponto de partida para analisar o problema é nem falar da (s) circular (es), cujo texto prejudica os professores, porque, quem as ler com atenção, verá que até na citação aí feita de partes do texto da lei os autores evitam (contra os hábitos de quem faz estas coisas) citar a lei exatamente e até indicam, como sendo transcrições da lei, pedaços de texto que estão truncados para terem um sentido diferente do que se verteu na própria lei.
Quem achar que minto (ou não tenho credibilidade ou sou ignorante) leia a lei e compare com o que as circulares dizem. Aliás, há partes do texto em que até se notam graves problemas do chamado vício de raciocínio circular.
Ironias à parte, voltaremos a isto, no próximo texto, agora de forma mais concreta.

Retirado daqui: 

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