Notas
prévias: O autor deste texto não é jurista. O autor deste texto tem 45 anos e
não beneficiou nunca de nenhuma redução de componente letiva. Mas acredita no
Estado de Direito e acha que é preciso lutar-se por ele. E o respeitinho não é
bonito. Pode até ser estúpido.
O artigo 79º do
ECD está a ser bem aplicado?
Aos
que querem resposta rápida, digo que a resposta é complexa, mas prometo que, no
fim deste texto e do seguinte, talvez tenham algumas pistas relevantes para a
vossa própria análise. E irei tentar evitar argumentos de autoridade (que não
tenho condições de usar) do que resulta que os textos sejam longos. Mas acho
que, quem tem mais de 50 anos, terá muita utilidade em ler estas reflexões com
atenção. E, se ler isto tudo vai dar trabalho, pensem que, tendo a idade que
tenho, me dei a este trabalho todo por razões mais profundas que o simples
interesse pessoal. Mais do que dar uma resposta, vou tentar explicar como
cheguei à resposta que dou para mim próprio à pergunta.
Que
até poderei vir reconhecer estar errada… se me provarem. E não com argumentos
de autoridade.
Se
não tiverem pachorra para ler, resumo o conselho:
vão a um advogado, que não se deixe impressionar por circulares e
pelo seu nulo valor legal e que estude o problema.
E
pode valer muito a pena gastarem dinheiro numa simples consulta (as horas
letivas não reduzidas podem valer uns milhares de euros acumuladas em vários
anos, mesmo se as tivessem de prestar como não letivas). E para aqueles que
acharem que o que aqui se diz não tem credibilidade e é obra de um ignorante,
aceito pessoalmente discutir o assunto (podem contactar pelo endereço do
blogue, que responderei cordatamente, mesmo que se posicionem nessa base).
Aceito ser ignorante, mas têm de me provar.
Poderá
parecer arrogante, mas para os que me atiram com o argumento do que está
escrito nas circulares do ME sobre este tema eu respondo: exponho aqui o
meu raciocínio e a sua base racional; os autores das circulares dão-se a esses
trabalhos ou usam apenas o poder de mandar?
Por
isso, comecemos pelo fim.
As circulares valem sobre as leis?
Direito
circulatório é
uma expressão relativamente comum em juristas que se dedicam às áreas
administrativas e fiscais e representa, até com ironia, a ideia de que em
Portugal parece que vigoram 2 tipos de níveis de normas:
–
as leis (Leis, Decretos-Lei e Decretos Legislativos regionais)
e regulamentos (decretos-regulamentares, portarias, etc) que valem
por serem mesmo normas jurídicas;
–
e as circulares (interpretações dessas normas legais e
regulamentares, feitas por alguém dentro da administração, muitas vezes nem
sequer membro do Governo, com a sua leitura e explicação pessoal sobre o que a
lei diz e que funcionam como ordens aos funcionários e órgãos subordinados, que
têm de as aplicar).
Parece
mas não é assim.
Um ponto prévio sobre a polémica
Antes
de explicar a relevância disto para o caso do artigo 79º e a redução da
componente letiva, um ponto prévio, com uma face geral e outra, pessoal.
Primeiro
a nota geral. Na área de educação, alguma carência de estudo do
Direito, leva os professores, dirigentes e responsáveis administrativos a
elevar as circulares a píncaros de capacidade de vincular, que realmente não
têm. O Código de Procedimento Administrativo estipula, com clareza indubitável
que a administração, seus trabalhadores e dirigentes, estão primeiramente
vinculados à lei. Também estão vinculados às ordens legítimas dos seus
superiores hierárquicos, mas a lei explicita muito bem este aspeto da ordem “legítima”.
É ilegítima a ordem que não cumpra ou que promova a violação da lei.
Agora
a nota pessoal. Faz, por estes dias, 10 anos que o Supremo Tribunal
Administrativo decidiu que o escriba destas linhas podia tomar posse como
presidente de um conselho executivo. Para conseguir essa decisão tive de fazer
(através do trabalho de advogadas brilhantes e persistentes) várias reclamações
administrativas, 1 recurso hierárquico, 1 ação urgente de anulação de processo
eleitoral, responder a 2 recursos do Ministério da Educação, ameaçar com uma
ação executiva e ainda com uma queixa-crime. No fim, depois de passar por 3
níveis de Tribunais Administrativos, tomei posse e exerci funções 6 anos. O
ponto da lei que andei a contestar e que, para os leitores ávidos de direito
circulatório, não suscitava dúvidas, na minha alegada falta de razão, acabou
até por ser mudado em nova lei de forma a ficar mais claro. E no sentido que eu
defendia. Assim, consegui ganho de causa individual e ajudei a obrigar pela
teimosia a mudar a lei.
As
circulares e ofícios eram “definitivos” sobre a minha falta de razão. Quem
quiser conhecer esse processo melhor pode consultar aqui.
Gostava
que, nos casos altamente duvidosos de aplicação do artigo 79º do Estatuto da
Carreira Docente, alguém seguisse esse caminho de luta (com sindicatos ou sem
eles; e, na altura, nesse caso, até fui à luta contra o parecer deles). Daí ter
pedido ao Alexandre que neste blogue falasse do tema. E lamento que, por ter
feito o que lhe pedi, até tenha sido ofendido.
O caso similar da caducidade dos contratados
Como
dirigente (PCE e depois diretor) tive de aplicar várias circulares, mas sempre
com o espírito com que olho estas coisas. As circulares são ordens, mas não valem sem
se ler a lei, na sua versão original.
E
muito menos pode haver circulares a revogar leis ou a “legislar” contra ela.
Relembro
1 caso significativo: a caducidade dos contratos docentes. O
esquema mental de quem fez essa é muito semelhante ao de quem fez as relativas
ao artigo 79º do ECD. Basicamente interpreta-se a lei com o objetivo de tirar
direitos e poupar dinheiro (mesmo que a lei os atribua e implique, por isso, o
gasto que se quer evitar).
Nas
escolas, prefere-se a lei mastigada em circulares, à própria leitura da lei.
Depois, como muita gente vive com o pavor dos processos disciplinares e,
normalmente, os dirigentes não são muito versados em CPA e regras de
interpretação da lei, entre a interpretação oferecida pela administração (ou,
como muitos gostam ainda de dizer, a “tutela”), apresentada como única e
vinculativa, e a interpretação individual, que é legítima e necessária para
quem aplique leis, acaba por valer o que diz a circular.
Acresce
que a circular é interpretada como uma ordem que os “subordinados” têm de
cumprir (e até o é) e que, além disso, faz figura de interpretação autêntica da
lei (isto é, uma interpretação vinculativa). Faz figura porque realmente não
tem esse valor de interpretação autêntica.
As circulares são ordens para os cidadãos?
A
circular tem o valor de uma simples ordem de alguém a outro, dentro da administração. Na verdade, não tem eficácia externa
(que só as leis e regulamentos podem ter).
Sobre
isso vale a pena ler o artigo 138º, nº 3 do CPA que estabelece a ordem de
prevalência dos regulamentos governamentais. As circulares não constam aí
porque não são um regulamento governamental e, por isso, tem valor normativo
inferior a decretos regulamentares, resoluções do Conselho de Ministros com
valor normativo, Portarias e até despachos (de membros do Governo). E estas
normas todas valem sempre menos que as leis.
Assim,
as circulares valem para os dirigentes e para funcionários para determinar
atos, mas não para os cidadãos afetados por efeitos ilegais delas, que não têm
de se resignar à ilegalidade (e que, como cidadãos afetados nos seus direitos,
podem usar muitos outros meios para reagir).
Os
professores a quem é negada a redução de componente letiva não têm de se sentir
limitados pelo teor de qualquer circular. Em especial, se ela negar direitos
que resultam da formulação textual da lei.
No
caso da caducidade dos contratados, e há vários colegas contratados que são
testemunhas disso (e há provas escritas), como diretor, cumpri a circular, mas
escrevi ao ministério (com conhecimento aos cidadãos, os professores
contratados visados), dizendo que o fazia apenas por me ser dada a ordem a que
não me conseguia furtar. Na comunicação explicava que considerava que a
interpretação da circular sobre a lei era ilegal e contestável juridicamente,
solicitando, antes de a cumprir, que a confirmassem. A argumentação que aí
verti foi, pelos vistos, motivadora para vários contratados irem para tribunal
e, na generalidade, foi acolhida pelos tribunais.
Não
tive nenhum processo disciplinar por dizer, de forma elegante, que a dita
circular estava escrita com os pés e tinha o único objetivo de poupar uns
trocos. E se algum dos contratados que recorreu aos tribunais viesse a
solicitar que fosse responsabilizado como indivíduo, pela decisão ilegal
tomada, teria a defesa pessoal de dizer que até tinha avisado disso quem me deu
a ordem que cumpri e, por isso, a culpa dos efeitos era de quem deu a ordem (ao
escrever a circular).
Todos
os diretores que recusam reduzir componentes letivas, com base nas circulares
da DGAE sobre o artigo 79º do ECD, estarão conscientes disto que acabei de
escrever? E preparados para poder chegar a pagar do seu bolso o prejuízo?
Mas,
a verdade é que quase toda a gente cumpre as circulares como um dogma de fé,
sem se questionar sobre o que elas valem realmente e até sobre os riscos de,
com base nelas, executarem ordens ilegais.
O direito circulatório como problema geral
Este
tema é muito candente em várias áreas. Por exemplo, nas questões tributárias. É
uma questão densa, mas, sem dificuldade, se podem encontrar textos de juristas
a falar disto. Por exemplo, vejam este texto publicado numa revista
de Técnicos oficiais de contas.
Cito
só esta passagem, longa, mas que ajuda a reorientar o olhar sobre as circulares
de quem leva com elas todos os dias (os sublinhados são meus e ao contrário de
mim, quem escreveu é jurista):
“Desde
sempre e, ultimamente, com maior acuidade proliferaram na Administração Pública
e, particularmente, na Administração Fiscal as circulares, os ofícios
circulados e as instruções. Tais comandos normativos, por vezes impropriamente
apelidados de “direito circular” ou “direito circulado”, constituem resoluções
meramente administrativas, de carácter geral e abstracto. E coloca-se a
questão de saber se estamos perante verdadeiras normas jurídicas, perante uma
fonte de direito.
Antes
de mais, importa referir que é de todo incompreensível na
Administração Pública, maxime na Administração Fiscal, o recurso a tais
despachos genéricos, só aceitáveis face à incompreensão das leis
fiscais e à sua proliferação, quantas vezes descoordenadas entre si e cuja
técnica legislativa passa ao lado de princípios elementares do direito. Isto
para além de, muitas vezes, a pressa da lei se sobrepor à técnica jurídica. Depois
lá vêm as circulares e os ofícios circulados, algumas vezes quase tão extensos
como a lei interpretada.
Feito
este aparte, que nos parece pertinente face ao despudorado abuso de
tais comandos interpretativos que, por vezes, ultrapassam a própria lei,
desvirtuando-a, questiona-se a sua eficácia externa ou a sua força
legal.
(….)
Assim, tais comandos normativos não poderão ter eficácia externa,
sendo a sua força vinculativa circunscrita aos sectores da Administração
Pública hierarquicamente dependentes do órgão de que foram emanados. Ou
seja, a força vinculativa de tais diplomas assenta na autoridade
hierárquica dos seus autores, conjugada com o dever de obediência dos subordinados
a que se destinam. Concretizando, uma circular emanada, por
exemplo, do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, ou do Director-Geral dos
Impostos, tem por destinatários os funcionários hierarquicamente dependentes
daquelas entidades que, por isso, lhes devem obediência hierárquica. Mas a sua
eficácia não extravasa aquele âmbito restrito departamental. A
eficácia de tais diplomas não se estende aos contribuintes, que devem apenas
obediência à lei e não às interpretações que dela fazem os serviços
governamentais.”
Onde
se lê contribuintes leia-se “docentes cuja redução está em causa” e creio que
fica claro o que devemos dizer das circulares interpretativas da DGAE sobre o
artigo 79º, se elas afetam direitos legais.
Há
muita doutrina sobre isto (veja-se por exemplo, entre outros textos acessíveis,
este parecer do Conselho Consultivo da
PGR que vai na mesma linha o texto que citei).
Assim,
retornando ao contexto escolar, um diretor, trabalhador em funções públicas,
até tem por dever de obediência, de cumprir uma circular, porque é uma ordem
resultante do poder de direção de alguém que lha possa dar, mas pode até
discuti-la e questioná-la pelo processo que a lei prevê para a discussão e
contestação de ordens ilegais ou ilegítimas. E no limite, se a cumprir, e como
o valor da obediência a ordens está sujeito à legalidade dessas ordens, até
pode ter problemas de responsabilidade se, para cumprir uma circular, desrespeitar
uma lei.
Admito
que isto pode parecer abstruso, mas tem razões jurídicas fortes (e poupo-vos ao
exemplo clássico do argumento defensivo do cumprimento de ordens pelos réus de
Nuremberga, que qualquer busca na net permite topar e que é muito demonstrativo
pelo absurdo).
Quem sofre os efeitos de circulares tem de desistir dos seus direitos só
por elas existirem?
O
cidadão (no nosso caso, os professores que não tem direito à redução de
componente letiva, por via da interpretação de uma certa circular, ou várias
que sejam) não tem de aceitar isso como solução definitiva e tem de se mexer
juridicamente, se dá valor ao direito que perde. O conselho de ir a um advogado/a para uma
consulta é sempre um bom conselho. E mais neste caso, em que os valores são significativos.
Em
resumo, para discutir o que diz o artigo 79º do Estatuto da Carreira docente
vamos aqui, por uma vez, esquecer a (s) circular(es), que muitos tem vindo a
esgrimir como argumento definitivo para que o assunto “esteja resolvido”.
O
pagamento do valor da caducidade aos contratados também era assunto resolvido
e, na generalidade, os que foram discutir para tribunal o seu direito legal,
contra a circular, ganharam e receberam a massa…
Não discutir beneficia o infrator
A
verdade é que a maioria dos afetados pela ilegalidade e retirada de direitos,
causada por essas circulares da caducidade não foi para tribunal discutir.
Assim, a ilegalidade, vertida nas circulares e que visava poupar dinheiro ao
Estado (em valores relativos a caducidade), compensou bastante ao infrator (o
ME).
Os
que se convenceram que a circular valia, e não foram para tribunal, podem até
tê-lo feito por causa dos custos para si dessa reação.
A
Administração está vinculada à lei e não devia ser necessário ir sempre para
tribunal para conseguir firmeza no cumprimento da lei.
Os
que foram para tribunal, e ganharam, além do prémio da sua coragem e
inconformismo, prestaram um bom serviço ao Estado de Direito, porque não
entraram no jogo de quem faz circulares subversivas: apostar no cansaço e
apatia de quem lhes sofre os efeitos.
Aposta
que continuará a vingar se se aceitar a prática inconstitucional de
despudoradamente um simples diretor geral, ou menos que isso, anular a vigência
de leis por via de circulares. E os contratados da caducidade até podem ter
ganho menos em valor que o que vale a questão do artigo 79º.
E,
como já recorri a tribunais contra a máquina do Ministério da Educação, sei bem
o que devem ter sofrido os que reagiram, com a forma como o ME atua nessas circunstâncias.
Deixar
passar circulares que difundem interpretações erróneas (e subversivas) de
direitos laborais, ou outros, como leis que não são, enfraquece a Lei e o
Estado de Direito.
Por
achar que era preciso gente a agir assim no caso do artigo 79º do ECD, e
estando muito ocupado com outros assuntos, neste final de ano, pedi, por isso,
ao Alexandre que chamasse a atenção neste blogue para o caso e a sua má
interpretação por via de circulares do ME.
O
turbilhão que isso causou por aqui justifica que se volte ao tema. E tudo o que
de negativo foi dito sobre a iniciativa do Alexandre deve ser-me imputado a
mim.
Mas,
para quem acena com a circular que o ME fez sobre isto para declarar o assunto
encerrado, digo só isto: se
houver coragem e energia para uma reação jurídica bem estruturada, o assunto
ainda só agora começou.
E
aí o papel dos sindicatos pode ser relevante, se defenderem juridicamente os
interesses difusos aqui prejudicados ou apoiarem os associados que se queiram
mexer. Apesar de já ter havido uma derrota num caso que chegou a tribunal, isso
não devia ter significado a desistência, mas a insistência, porque o assunto
nem sequer chegou a ser analisado pelo Supremo Tribunal Administrativo e “uma
andorinha não faz a primavera”.
E
isto, especialmente, se o caso em que o tribunal não deu razão ao docente que
reclamou (e a deu ao ME) tinha condições particulares, que justificam essa
derrota, que pouco tem de definitiva para os restantes abrangidos e para a
generalidade do problema.
Por
isso, o meu ponto de partida para analisar o problema é nem falar da (s)
circular (es), cujo texto prejudica os professores, porque, quem as ler com
atenção, verá que até na citação aí feita de partes do texto da lei os autores
evitam (contra os hábitos de quem faz estas coisas) citar a lei exatamente e
até indicam, como sendo transcrições da lei, pedaços de texto que estão
truncados para terem um sentido diferente do que se verteu na própria lei.
Quem
achar que minto (ou não tenho credibilidade ou sou ignorante)
leia a lei e compare com o que as circulares dizem. Aliás, há partes do texto
em que até se notam graves problemas do chamado vício de raciocínio circular.
Ironias
à parte, voltaremos a isto, no próximo texto, agora de forma mais concreta.
2ª
parte – Artigo 79º ECD (redução letiva) (II): convite à leitura
da lei (tal como ela foi escrita)
Retirado daqui:
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