Raquel Varela
Há uns anos a professora de matemática
dos meus filhos (com a qual ninguém na turma precisava de explicações privadas)
encontrou-me no supermercado e disse-me que tinha pedido a reforma antecipada.
Não se podia fazer nada inovador, “interessante com os miúdos”, não por causa
dos miúdos! – ela tinha sido transformada numa “máquina de preparação para
exames”, “deixou de ter pachorra” – “o director até me chamou para perguntar
porque eu tinha ido para o pátio, onde havia um pequeno lago redondo”,
explicar, se me lembro bem, algo como cálculo de formas geométricas. Com cada
vez menos autonomia, imposta pelos directores nomeados e pela padronização “por
baixo” dos exames, ela, cuja função era ensinar matemática a toda a turma, de
forma apaixonante, desistiu.
Estávamos então a fazer o inquérito às
condições de trabalho dos professores, em que 19 mil responderam a 158 questões
(uma taxa muito superior a qualquer sondagem realizada em Portugal), a taxa dos
que desejavam reformar-se era mais de 80% bem como de exaustão emocional – mais
de 70%. Uma professora escreveu-nos, está publicado no livro do estudo, que
saiu há 2 meses, que se sentiu mais acarinhada no IPO, onde tratava um cancro,
do que na escola…Temos dezenas de testemunhos de professores que preferiram sair
com menos dinheiro do que continuar a exercer “uma mentira”, em péssimas
condições, depois das reformas Crato/Lurdes Rodrigues. Uma delas foi minha
professora de história, cuja paixão e seriedade com que ensinou na escola
pública foram determinantes para a minha vida. Agradeço-lhe, para sempre.
Não há progressão na carreira e isso
acabou com a carreira – os professores de facto ficam toda a vida a ganhar o
mesmo (1200 ou 1400 euros, hoje um salário mínimo em Lisboa ou Porto), porque
através da avaliação individual de desempenho com quotas apenas um ou dois – e
de acordo com a pontuação da escola (o que inflaciona as notas, obrigando-os a
mentir nas avaliações, segundo os testemunhos que recolhemos) – progredirem.
Pode haver 20 excelentes, mas só um pode passar. Imaginem eu dizer isto aos
meus alunos, vão fazer um teste, todos podem ter 20, mas só um terá direito a
passar com 20. Uma criança de 6 anos acharia uma injustiça, o Ministério e o
Governo não.
Acresce que a reforma agora é calculada
de acordo com média dos 14 melhores anos – ou seja, vão ter uma vida triste sem
acesso a bens de lazer na reforma.
À falta de autonomia, aos directores
nomeados em vez de eleitos pelos pares, à ausência de cooperação imposta pela
avaliação de desempenho, aos programas de “aprendizagens essenciais”
(pressionados pelos empresários que querem trabalho barato) que retiram toda a
paixão do conhecimento, ficando “tarefas” e “competências” desinteressantes,
para alunos e professores, que aumentam a indisciplina, junta-se a cereja no
bolo – a municipalização das escolas, em que deixa de haver um concurso onde
são colocados pelas notas e passam a ser escolhidos, por um grupo de “notáveis”
– sabe-se o futuro, a passar esta lei, os municípios mais ricos vão escolher e
pagar mais a alguns professores, os outros vão sendo colocados em escolas
piores, no fundo aquilo que já se fazia com as turmas – A para os melhores até
ao J – para os desgraçados – passar a ser o modelo nacional. A isto vai-se
juntar o apadrinhamento político, a perseguição, os favores, o assédio, como
vão estes professores, na mão de empresários/municípios, que decidem os seus
destinos, fazer greve ou contestar seja o que for?
O que está em causa nas escolas não é
mais um retrocesso social imposto aos professores. É a destruição completa do
que resta da escola pública onde ainda havia nichos de qualidade – os
professores serão uma espécie de ubers da educação, levados de vila para vila,
serão prestadores de serviços. Daí a importância, para todos nós, desta greve.
Como mãe usei todas as estratégias individuais e privadas para dar a melhor
educação aos meus filhos e “safei-os”, em parte, da degradação a que fui
assistindo como investigadora. Mas como cidadã deste país digo-vos que as
nossas soluções individuais – recorrer as explicações ou colocá-los em escolas
privadas muito boas – além de caríssimas, não resolvem a questão fundamental do
país. E por isso não resolvem os problemas dos nossos filhos. Que país queremos
para eles?
A escola precisa de olhar os professores
como intelectuais (sim, é uma profissão intelectual), com autonomia, recuperar
a noção de currículo contra as “competências”, dar espaço pedagógico para que
as aulas sejam apaixonantes, isso só se faz com conhecimento denso e profundo,
precisa de ser uma escola que não desiste nem nivela por baixo, mas que ensina
o melhor de tudo a todos (qualidade massificada, sim!); precisa de voltar a ter
gestão democrática, eleição entre pares, avaliação colectiva, progressão sem
quotas, cursos superiores com componente científica de 5 anos (e não de 3), e é
preciso discutir de uma vez por todas se queremos ou não dar o melhor de
qualidade a todos ou nivelamos sempre por baixo adaptando o currículo ao
mercado de trabalho, pobre e desinteressante. Os notáveis, e os municípios, na
sua maioria, são empresários que querem trabalho barato e pouco qualificado e
os professores, com a municipalização, são uma peça deste jogo.
A escola tem que debater e combater (é isso que esta greve faz!) a
transformação dos professores em ubers digitais que formam alunos ubers
digitais. A escola, afirmou-se, contra Deus e o Mercado, em defesa do
Conhecimento, não pode servir o Mercado, tem que servir o conhecimento.
Este é um debate por se fazer em
Portugal, a greve que está em curso coloca o dedo na ferida de algumas destas
questões e demonstra que, ao contrário de uma parte do país dirigente, contente
com este rumo, os professores querem transformar e questionar decisões, tomadas
sem os ouvir, sem os compreender, sem os escutar. Têm o meu apoio. A escola
serve para dar aos alunos o melhor do conhecimento produzido pela humanidade,
não serve, não pode servir, o Mercado. O Mercado tem que ser dominado pela
democracia e pelo conhecimento.
Não são os professores que devem ser escolhidos pelos “notáveis”, são os notáveis que devem ser escolhidos pelos professores. E assim deixariam de ser notáveis, que no fundo, é a Democracia.
Sem comentários:
Enviar um comentário