A MOCIDADE PORTUGUESA
(In "Évora, anos 30 40", em preparação)
Em obediência a uma ideologia,
por demais estudada e descrita, Salazar fez nascer, em 1936, a Mocidade Portuguesa, organização abrangendo os jovens dos
dois sexos, a partir dos 7 anos de idade, com o fim de lhes potenciar o
desenvolvimento integral e harmonioso das capacidades físicas, lhes moldar a
formação do carácter, inculcar neles o gosto pela disciplina, os sentimentos de
devoção à Pátria, da obediência aos chefes e dos deveres morais, cívicos e
militares. Nesta organização do Estado Novo, os rapazes eram lusitos, dos 7 aos
10 anos, infantes, dos 10 aos 14, vanguardistas, dos 14 aos 17, e cadetes, dos
17 aos 25.
A Mocidade Portuguesa apanhou-me enquanto aluno na escola
primária de São Mamede, com formaturas e outros exercícios de ordem unida, aos
Sábados de manhã, em preparação para paradas ao estilo da tropa. Eram horas de
fastidioso “um, dois, esquerdo, direito”. Tínhamos por instrutores uns tantos
sargentos do exército, arregimentados para o efeito, a troco de um magro
suplemento no soldo. A par destes havia os mentores, incumbidos de pôr em
prática os ideais da organização, recrutados entre alguns oficiais do Exército
e os nossos professores declaradamente identificados com o regime ou que dele
visassem tirar algumas regalias.
Nos desfiles, em cerimónias de comemorações patrióticas,
marchávamos garbosamente, de passo bem acertado, para grande orgulho do nosso
instrutor e, ao passarmos pela tribuna, esticávamos o braço direito, num Heil
Hitler à portuguesa, em saudação às personalidades militares, religiosas e
civis ali presentes. Nas paradas, em formatura, ouvíamos belas prelecções
exaltando o amor à pátria e à família e a obediência aos chefes. Destas paradas
recordo uma em que o padre Silva (depois cónego e, mais tarde, arcebispo de
Braga), ao tempo, nosso capelão, falava do amor a Deus e à Virgem, de lírios
brancos e de pombas da mesma cor.
O essencial do suporte logístico de muitas das nossas
actividades, vinha-nos da tropa. Eram dos quartéis as viaturas que nos
transportavam, as cozinhas de campanha e os cozinheiros que nos confeccionavam
o rancho, aquando dos grandes acampamentos, bem como as enfermarias móveis e os
enfermeiros que nos acompanhavam.
Como criança, cumpri sem quaisquer problemas a filiação
obrigatória na Mocidade Portuguesa. A farda, incluindo um par de botas, era
dada pela delegação local às crianças cujos pais não dispunham de posses para a
comprarem e vendida, a preço relativamente modesto, aos que não precisavam
dessa caridade. O meu pai que era empregado de escritório, depois de informado
pelo director da minha escola, em São Mamede, na cidade de Évora, teve de
comprar duas pois que, enquanto uma ia a lavar, havia que vestir a outra. Não
comprou botas, porque botas já eu usava, das grossas e reforçadas com duas
fiadas de cardas. Não gostei nem desgostei de andar fardado de verde e
castanho. Era uma roupa como outra qualquer.
Para nós, crianças e rapazes, havia motivos de interesse nesta
organização que não associávamos aos regimes totalitários, uma realidade que
nos escapava completamente. Fora as grandes secas que eram a instrução, os
desfiles e as paradas ao estilo militar, a “Mocidade” oferecia actividades ao
nosso gosto. Dispúnhamos, na então “ala de Évora”, de uma ampla e bem equipada
sede e, nela, uma biblioteca juvenil, à nossa disposição, com obras bem
escolhidas pelos mentores locais e salas e jogos com ping-pong, “laranjinha”,
xadrez e outros do nosso agrado. A “Mocidade” proporcionava-nos ginástica,
desporto e outras actividades convidativas, que a escola não tinha meios para
oferecer como, entre outras, aviominiatura e campismo. Destas, ficou-me o gosto
pela aviominiatura que, mal ou bem, pratiquei até que a vida me ocupou todo o
tempo que lhe dedicava. Ficou-me, ainda, uma certa paixão pelo campismo.
Curiosamente, foi esta prática, no contacto com a natureza, no
mundo rural norte-alentejano, que me permitiu conviver com alguns resistentes
ao regime, conhecer as suas ideias e as respectivas razões. Foi, assim, no
convívio muito estreito com os camponeses, que me iniciei numa
consciencialização social e política que me marcou para a vida. Alguns deles,
soube-o mais tarde, eram militantes do Partido Comunista que, com todos os
defeitos sectários das militâncias, estavam certos ao assumirem-se como homens
desumanamente explorados por outros homens. Eram pais e mães, muitas vezes sem
trabalho e sem pão para os filhos, a passarem ao lado das searas imensas, das
montanhas de cortiça e dos Mercedes dos senhores da terra. Eram cidadãos e
cidadãs a lutarem, na clandestinidade, contra esta aberração que era a nossa
sociedade nesses anos e nos que se seguiram até a libertadora Revolução dos
Cravos.
Qualquer adolescente, na generosidade própria da sua condição de
jovem a abrir portas e janelas à vida, só pode alinhar ao lado dos mais
desprotegidos. E foi isso que me aconteceu. Os muitos anos que se seguiram a
esse meu despertar, o desenrolar dos acontecimentos dentro e fora das nossas
fronteiras, acabaram por caldear a minha maneira de ver o mundo e por definir o
espaço da sociedade onde quero e gosto de estar, mas sempre independente dos
aparelhos partidários.
Quando, aos 17 anos, a Mocidade Portuguesa me fez cadete e me
obrigou a cumprir a milícia eu já não era o filiado ingénuo e alheado da
realidade social e política do nosso país. A actividade para os rapazes mais
velhos, neste corpo paramilitar, envolvia-nos, obrigatoriamente, em unidades de
instrução de ordem unida, com espingardas (a velhíssima Mauser, de 1904) nas
mãos e capacetes de aço enfiados pela cabeça. Na farda, a única diferença, face
aos mais novos, era a substituição dos calções por calças compridas. A nossa
instrução fazia-se, não no terreiro da escola ou no do Liceu, mas na parada do
Quartel de Infantaria 16, a par dos soldados, face aos quais o nosso sargento
instrutor gostava de nos pôr em competição. Como potenciais inimigos,
apontavam-nos os russos e, por vezes, os espanhóis. Os russos porque
simbolizavam o inimigo vermelho, e os nossos vizinhos que, apesar de irmãos
nessa cruzada contra o comunismo, nos permitiam evocar o 1º de Dezembro de
1640, Aljubarrota e Dom Nuno Álvares Pereira, cujas insígnias nos inspiravam.
Para as raparigas, a Mocidade Portuguesa Feminina, nascida em
1937, obrigatória dos 7 aos 14 anos, tinha por objectivo criar o que Salazar e
a Igreja, sob a tutela do cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977),
entendiam ser a nova mulher portuguesa: boa esposa, boa mãe, boa dona de casa e
boa cristã, mas sempre longe da intervenção política, uma actividade reservada
aos homens. Entre as actividades, para além da ginástica e do desporto adequado
ao chamado sexo fraco, contavam-se os lavores femininos e outros trabalhos
inerentes à vida do lar. Por testemunho da minha irmã Maria de Lourdes,
davam-se-lhes conselhos sobre os livros a ler, falava-se-lhes de economia
doméstica, das virtudes de D. Filipa de Lencastre, do Santo Condestável e de
outros grande heróis e das atitudes a ter em casa com os filhos e o marido.
É curioso assinalar que os homens e as mulheres, ao nível do
país, encarregados de moldar ideologicamente uma mocidade (a desse tempo) e
toda a hierarquia acima deles e delas falharam redondamente. Foi essa mesma
mocidade, feita homens e mulheres na força da vida, que, em Abril de 1974, não
levantaram os braços para defender a ideologia em que haviam sido educados.
Antes pelo contrário, exultou de alegria e colocou cravos nas espingardas dos militares
que puseram fim a tamanho sufoco.
NOTAS:
A Mocidade Portuguesa foi criada pelo Decreto-Lei n.º 26 611, de 19 de Maio de 1936[1], em cumprimento do disposto na Base XI da Lei n.º 1941, de 19 de abril de 1936, e extinta em 25 de Abril, pela Junta de Salvação Nacional, através do Decreto-Lei n.º 171/74,
A Mocidade Portuguesa foi criada pelo Decreto-Lei n.º 26 611, de 19 de Maio de 1936[1], em cumprimento do disposto na Base XI da Lei n.º 1941, de 19 de abril de 1936, e extinta em 25 de Abril, pela Junta de Salvação Nacional, através do Decreto-Lei n.º 171/74,
A Obra das Mães pela Educação Nacional foi criada pelo
Decreto n.º 26 893, de 15 de Agosto de 1936, e extinta, na sequência da
Revolução dos Cravos, pelo Decreto-Lei n.º 698/75, de 15 de Dezembro.
A Mocidade Portuguesa Feminina foi criada pelo
Decreto-Lei n.º 28 262, de 8 de dezembro de 1937 e confiada à Obra das Mães
pela Educação Nacional, foi extinta em 25 de Abril, pela Junta de Salvação
Nacional, através pelo Decreto-lei n.º 171 /74.
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