1. Enquadramento
Há cerca de dois anos, realizava-se,
em Lisboa, a Conferência Pensar
a Educação. Portugal 2015 que
culminava um projecto de reflexão, que mobilizou e envolveu várias dezenas de
pessoas na elaboração de textos de análise e de proposta sobre distintas
problemáticas do nosso sistema educativo e da política de educação em Portugal.
Toda a documentação produzida foi reunida em dois volumes: Pensar a Educação e Pensar a
Educação – temas sectoriais (Educa
editores, 2015). Também se encontra disponível em Educacao-sec21.blogspot.com .
Ao contrário do que sucedia na altura
em que iniciamos o referido projecto (2014), quando o debate sobre a educação
parecia ausente das agendas políticas, presentemente o tema vem ganhando maior
visibilidade, não só devido a um conjunto de medidas governamentais avulsas
entretanto adoptadas e que suscitaram alguma controvérsia (municipalização,
contratos de associação e relação público e privado, regime de avaliação dos
alunos, etc) como pela divulgação de trabalhos de investigação no âmbito do
projecto AQUEDUTO da responsabilidade do Conselho Nacional de Educação (http://www.aqeduto.pt/),entre
outros.
A destacar a recente publicação de um
relatório sobre o perfil educativo do aluno à saída da escolaridade obrigatória
que o Governo colocou em apreciação pública. Este relatório tem por fundamento
um enunciado de princípios, valores, objectivos e metas a atingir. Pretende
traçar um quadro de referência para a definição não só de novos currículos como
de metodologias e processos de aprendizagem. A este propósito, cabe perguntar:
qual a pertinência da análise e da proposta feita? Estão devidamente
acauteladas as condições da sua viabilidade ou estamos perante uma mera
declaração de intenções?
Antes, porém, de o fazer, considera-se
oportuno que, na continuidade com o projecto anterior (Pensar a Educação.
Portugal 2015), também nos interroguemos sobre a situação presente do
sistema educativo, nas suas múltiplas vertentes, as suas estruturas, os seus
recursos materiais e humanos, o seu modelo de gestão e a cultura institucional
prevalecente no sector e avaliar o que terá melhorado, o que piorou e quais os
principais problemas que permanecem sem solução à vista? Tudo isto sem ignorar
que novos desafios se perfilam no horizonte, dadas as mudanças aceleradas que
se avizinham no domínio demográfico, tecnológico, económico, societal e
geo-político.
2. O
que melhorou? O que piorou? Que problemas sem solução à vista?
Sem qualquer pretensão de
exaustividade, procuramos recolher junto de cada coordenador/a de diferentes
áreas temáticas do anterior projecto uma resposta de síntese a estas
interrogações. O conjunto das respostas obtidas permite-nos fundamentar as
observações seguintes.
- Há esforços que se reflectem numa
avaliação positiva do sucesso dos alunos à saída dos diferentes ciclos
formativos, segundo os parâmetros e as metodologias em vigor. Contudo, tais
avaliações pecam por não contemplar os indispensáveis aspectos qualitativos da
formação, por não darem conta da diversidade de situação sócio-económica dos
alunos e dos correspondentes factores externos condicionantes das aprendizagens
e dos seus resultados, por risco de não estarem inscritos numa trajectória de
evolução positiva, consistente no futuro.
- Apesar da diminuição da repetência
e da desistência, os níveis de retardamento permanecem demasiado elevados, a
começar logo no 2.º ano de escolaridade. Mantém-se, por isso, a necessidade de
alterar os procedimentos de “avaliação”, não em nome do “facilitismo” mas da
exigência para todos. Seria interessante conhecer o que tem sido a efetiva
realização do Plano Nacional de Promoção do Sucesso Escolar, criado em abril de
2016. Apresentado como uma ruptura com a política educativa do governo
anterior, assume-se que todos
têm direito ao sucesso e que a retenção já provou a sua ineficácia. Falta,
contudo, verificar se a opção por uma estratégia bottom-up, fundamentada na
expectativa de uma resposta positiva das escolas e dos professores será
suficiente para a promoção de uma mudança consistente, que contemple,
simultaneamente, inclusão,
promoção do sucesso e igualdade de oportunidades.
- Ao contrário do que seria
desejável, a reorganização de ciclos formativos não está em agenda. Seria uma
mudança de fundo, muito além da lógica de experimentação e disseminação das
boas práticas e de reajustamentos nos programas curriculares até agora adotada
pela Tutela. Tem-se por desejável a intenção de dar mais atenção aos alunos e
aos seus percursos formativos e de flexibilizar os currículos, mas há que
adoptar medidas que assegurem que a flexibilização não fique cativa de
interesses particulares.
- Concordamos com o fim do modelo
“vocacional” no ensino básico, entretando decidido, mas não pode ignorar-se que
se mantém a dificuldade de muitas escolas em lidarem com as situações mais
difíceis de insucesso e de desadequação ao modelo escolar por múltiplas razões.
Não pode ignorar-se que o prolongamento da escolaridade obrigatória mantém nas
escolas alunos com pouca disponibilidade para currículos com uma forte
componente teórica, mesmo nos cursos profissionais. Recorrer a modalidades
menos formais de educação, tendo em vista a promoção de competências sociais
prévias a qualquer percurso de formação formal, pode contribuir para atenuar o
insucesso e o abandono escolares. Há, por isso, que promover alternativas que,
respeitando o princípio da inclusão, atendam à diversidade de situações.
- Afigura-se-nos ser necessário
valorizar o ensino técnico, artístico, tecnológico, experimental e prático em
todas as vias de estudo, avaliar as soluções em curso e encontrar caminhos de
superação das falhas até agora encontradas.
- As funções de acompanhamento e de
orientação escolar e vocacional das crianças e dos jovens assumem acrescida
importância, incluindo o papel do diretor de turma e do acompanhamento
tutorial, na definição de percursos escolares que assentem no desenvolvimento
de projetos de vida em que relações, valores, atenção aos outros devem andar a
par de conhecimentos académicos e competências escolares estritas. Não basta,
porém, reconhecer esta relevância, há que criar condições que permitam o seu
desempenho efectivo, designadamente assegurando a provisão de adequados
recursos humanos, o que implica reforço de técnicos da área da psicologia e
re-afectação de tempo (lectivo e não-lectivo) dos professores que sejam
chamados a desempenhar tais funções e sua formação específica para o respectivo
desempenho.
- Não se ignoram os prementes
problemas de indisciplina que existem em muitos espaços escolares, incluindo em
salas de aula, e a necessidade de adoptar não só regras disciplinares mais
adequadas à realidade (necessidade urgente de revisão do estatuto do aluno,
reforço da autoridade dos professores, do pessoal técnico e dos órgãos de
gestão, por exemplo) como novas respostas, a diversos níveis, sobretudo por
parte de outros serviços da comunidade, dos pais e suas organizações, da
comunicação social.
- A
situação das crianças com necessidades educativas especiais continua a requerer a maior atenção,
pois a situação actual está longe de ser satisfatória. É manifesta a falta de
recursos humanos para proporcionar o apoio de que estas crianças e adolescentes
carecem. As alterações de legislação introduzidas por despacho ministerial de
Julho 2016 devem ser criteriosamente avaliadas e, se necessário, revistas tendo
em conta as seguintes recomendações:
Uniformização de conceitos, tais como
inclusão, educação especial, necessidades educativas especiais (NEE) bem como
os conceitos respeitantes às várias categorias que se inserem no espectro das
NEE.
Elaboração de programas específicos
para cada aluno com NEE e implementação de um processo que leve à adequação de
respostas educativas eficazes com base num modelo multinível.
Simplificação dos processos
burocráticos, redução de alunos por turma, disponibilidade de materiais
pedagógicos específicos para os diferentes tipos de deficiência.
Criação de mediações para um adequado
envolvimento, formação e responsabilização parental.
A este propósito merece destaque o
indispensável reforço dos recursos humanos e financeiros necessários para fazer
face a estas necessidades.
- A
educação da infância vem
merecendo maior atenção, sendo de salientar o compromisso do actual Governo com
o objectivo da universalização da oferta da educação pré-escolar para todas as
crianças de 4 e 3 anos.
Reconhece-se que é igualmente positiva
a publicação de orientações curriculares para a educação pré-escolar e a
intenção de maior investimento na formação de educadores/as e demais
profissionais ao serviço deste nível educativo, como garantia de uma educação
de qualidade. Trata-se de um nível educativo onde a proximidade geográfica das
famílias, a dimensão do estabelecimento, o número de crianças por educador/a e
pessoal auxiliar, são factores de primordial importância. Haveria, assim, que
proceder à avaliação deste sector segundo este ponto de vista.
Por outro lado, considerando a rede
de oferta pública e privada existente, a prevista extensão de cobertura deverá
cuidar do melhor aproveitamento da capacidade já instalada e da qualidade do
seu funcionamento.
Está por conseguir o desejável entendimento
entre o Ministério da Educação e a Segurança Social, o que, por vezes, se
revela na existência de critérios de orientação divergentes e práticas
contraditórias, com prejuízo para a qualidade da educação das crianças desta
faixa etária. Maior articulação com os Centros de Saúde é igualmente desejável.
Assinala-se, ainda, que permanece
inalterada a exclusão da Tutela da Educação dos cuidados das crianças dos 0 aos
3 anos o que se repercute negativamente na continuidade educativa.
Continuam a merecer a nossa
preocupação: a tendência para práticas socio-pedagógicas reprodutoras de modelo
escolar e a alunização antecipada das crianças desta faixa
etária, bem como o excessivo tempo em espaço fechado, em detrimento de maior
contacto com a natureza ou tempo para brincar ao ar livre e autonomamente.
Não pode ignorar-se que importa dar
grande prioridade ao combate contra a persistência e o agravamento da pobreza
infantil, o risco da obesidade infantil e o sedentarismo.
Retemos e destacamos entre as
propostas para futuro as seguintes:
- Necessidade de rever a formação inicial de educadoras/es e de auxiliares e de investir na sua formação contínua.
- Necessidade de rever a formação inicial de educadoras/es e de auxiliares e de investir na sua formação contínua.
- Inclusão da educação dos 0 aos 3 anos no sistema educativo.
- Revisão de toda a legislação e de documentação reguladora para a creche e jardim-de-infância, bem como do sistema de inspeção das instituições com vista a uma congruência de funções, práticas e processos.
- Equiparação dos estatutos profissionais, no sentido de reforçar a continuidade na Educação de Infância dos 0 aos 6 anos.
- No que respeita à administração do sistema escolar, é imprescindível avançar no sentido de uma clarificação de funções e atribuições aos vários níveis (central, regional e local) e adoptar os procedimentos correspondentes para o seu desempenho.
- Os actuais agrupamentos de escola,
em muitos casos, enfermam de um gigantismo que obsta a um desejável rosto
humano e à construção da identidade de cada comunidade escolar e acusam
disfuncionalidades múltiplas inerentes a modelos de gestão que, pela sua
natureza, são burocratizados, autoritários e susceptíveis de captura por
interesses locais e/ou partidários. Há que ter a coragem de avaliar a situação
e de corrigir as disfuncionalidades detectadas.
- As relações com a Tutela também
carecem de maior transparência (orientações claras, responsabilizadoras e
atempadas), condição básica de uma sustentada confiança.
Não basta enunciar propósitos de
maior autonomia das escolas; importa, sim, criar condições para que essa
desejada autonomia se possa concretizar, o que, por ora, está longe de suceder
e dificilmente se verificará no quadro do actual modelo de gestão.
- A designada municipalização da
educação suscita dúvidas de fundo e múltiplas perplexidades, existindo fortes
razões, incluindo as baseadas em avaliações de experiências já feitas, que
levam a recear que uma implementação apressada provoque retrocesso no princípio
da igualdade de oportunidades de educação de qualidade para todos os cidadãos e
cidadãs, além de poder abrir portas ao conluio e à eventual corrupção dos
poderes locais.
- Atenção prioritária merece também a situação dos professores enquanto classe profissional.
Regista-se com satisfação que o
discurso político tem revelado, ultimamente, alguma preocupação neste sentido e
existe, hoje, maior abertura ao indispensável diálogo social. Há, porém, que
passar das palavras aos sinais concretos de que se deseja e promove uma classe
profissional valorizada e respeitada, não só por governantes e políticos, como
também pelos media, pela opinião pública e pela sociedade em geral.
Em particular, há que rever a formação inicial e permanente de
professores (actualização
científica e pedagógica bem como preparação para tarefas específicas, de
gestão, de tutoria e outras).
Importa, igualmente, cuidar das
condições do recrutamento, da natureza dos estágios e da sua orientação
pedagógica, do estatuto remuneratório e da progressão na carreira.
Considera-se, ainda, imprescindível que se criem condições de trabalho e
incentivos que promovam a motivação, a capacidade inovadora e a participação na
comunidade educativa.
- A reconceptualização e a reorganização da educação de jovens e adultos fracamente escolarizados, com base numa avaliação criteriosa dos programas já experimentados e tendo em conta os desafios e as potencialidades das novas tecnologias.
- Os ciclos formativos, a sua respectiva
duração e critérios de transição;
- A permanência das crianças na escola e os horários escolares.
- A permanência das crianças na escola e os horários escolares.
A recente publicação do relatório
sobre o perfil dos alunos que cumprem a escolaridade obrigatória constitui um
avanço significativo no sentido de vir a dispor de um enquadramento legal de
referência para o sistema educativo e para a políticas públicas de educação,
pondo, assim, termo ao ciclo de medidas avulsas que se sucederam desde a
publicação da lei de Bases do sistema educativo, as quais, ainda que com os
melhores propósitos, tornaram o actual sistema educativo uma manta de retalhos
e introduziram no sistema instabilidade e outras disfuncionalidades.
O texto agora divulgado contem um
conjunto de conceitos, princípios, valores e orientações que deverão encontrar
tradução em futuro documento legislativo com força de Lei Geral. Não basta,
porém, que tal venha a acontecer e, de preferência, num futuro próximo. Em
nosso entender, é indispensável concretizar três pressupostos fundamentais, do
maior alcance.
O primeiro: a adesão da comunidade
educativa aos princípios e às orientações definidas, com a correspondente
mudança cultural que tal comporta.
O segundo: a criação de condições físicas e institucionais adequadas com a consequente provisão dos indispensáveis recursos humanos e financeiros.
O terceiro: a consecução de um amplo consenso político de modo a garantir a indispensável estabilidade da política educativa.
Reconhecendo que a natureza do documento produzido lhe imprime caracter de generalidade, o que não significa irrelevância, ainda assim, seria desejável que o mesmo equacionasse os principais desafios a enfrentar na sua implementação, tendo em conta uma visão realista da situação presente.
A nosso ver, existe um conjunto de
questões que ainda não estão equacionadas e de cuja solução dependerá o êxito
desta proposta.
Pensamos, designadamente nas seguintes:
·
a adesão, capacitação e enquadramento
de um corpo docente, tendo em conta que o mesmo se encontra, presentemente,
muito envelhecido, stressado e desmotivado;
·
a dimensão dos actuais
agrupamentos que deveria ser urgentemente revista, sob pena da prevalência do
numérico sobre a desejável humanização, autonomia e cooperação
·
a revisão do actual modelo de gestão
que enferma de ser demasiado concentracionária de poder e autoritária na
relação com o corpo docente e demais funcionários;
·
a definição clara das funções da
Tutela, superando a sua demasiada burocracia e criando uma cultura de confiança
e colaboração;
·
os riscos de uma municipalização
excessivamente abrangente e pouco prudente, que pode acarretar um
retrocesso na qualidade da educação e abrir portas à corrupção e ao conflito de
interesses; etc.
Se
não forem devidamente contempladas estas e outras questões, poderá suceder que este recente Perfil venha a ter os
mesmos efeitos, positivos e negativos, que anteriores versões, isto é, nenhuns,
o que esperamos não suceda, para bem da educação e do desenvolvimento do País e
das pessoas que o habitam.
4. Nota final
Este texto é da responsabilidade do
Grupo Economia e Sociedade. Teve por base os contributos dos coordenadores/as
de diferentes áreas temáticas, nomeadamente: José Maria Azevedo e Paulo Melo,
Maria da Assunção Folque, Luís Miranda Correia, Manuela Esteves e Maria José
Rau. Foi elaborado pela equipe coordenadora do projecto Pensar a Educação. Portugal 2015 (Manuela Silva, Belmiro Cabrito,
Graça Leão Fernandes, Margarida Chagas Lopes, Maria Eduarda Ribeiro, Maria do
Rosário Carneiro). É devido um agradecimento especial a Maria do Céu Tostão.
Ficará disponível em breve uma reflexão sobre o ensino superior.
Março 2017
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